Memórias de 1 de abril de 1964

Memórias de 1 de abril de 1964

POR GEORGE VIDOR
Coluna veiculada em 25/3/2014 na revista digital vespertina O Globo a Mais, dirigida a assinantes que a leem em tablets e smartphones:
"Já contei aqui como "participei" do comício do dia 13 de março de 
1964, início do fim do governo de João Goulart. 
Estava no primeiro ano do então ginasial do Colégio Pedro II (seção 
Sul), no Humaitá. No fim da tarde, quase sempre ia para o Clube 
Universitário/Federação Atlética dos Estudantes, jogar tênis de mesa. 
O "clube" funcionava dentro da sede da União Nacional dos Estudantes, 
à Praia do Flamengo. Ficava ali até que os jogadores mais "velhos" e 
mais graduados (na época, o esporte era dividido em três classes, da 
terceira para a primeira, e mais a etapa infanto-juvenil, na qual 
ainda me enquadrava) chegassem para treinar. Em alguns torneios, não havia distinção de 
idade. Por isso, joguei também contra adultos, eventualmente. Essas idas quase diárias ao prédio da UNE me propiciou algumas "regalias". 
Às vezes à noite, depois dos treinos, assistia a filmes proibidos para a minha parca 
idade na sala do Grupo de Estudos Cinematográficos (tinha uma 
"permanente", para ver os filmes de graça, que ganhei do coordenador do GEC) ou a ensaios de peças de 
teatro do pessoal do Centro Popular de Cultura, que era vizinho da FAE.
Tudo isso me fazia um garoto meio "politizado". 
No dia 31 de março, não tinha ainda ideia que a queda de Jango estava 
em curso. Na manhã de primeiro de abril não pude ir à aula porque 
havia uma greve geral de transportes. O dia estava nublado, e o 
ambiente tenso no prédio da UNE, já com poucas pessoas por lá. De 
repente, veio um boato que o prédio seria atacado pelo MAC (Movimento 
Anti Comunista) e uma "barricada", com pedaços de madeira da obra do 
Aterro do Flamengo, começou a ser montada em frente ao portão 
principal. 
Um tio meu por afinidade (Nylander Romildo Perreault de Laforet), que era 
sargento da Aeronáutica, chegou com um grupo de soldados no meio da 
tarde. Disse que tinha sido mandado para lá por orientação do comando 
(estava lotado no III Comar, no aeroporto Santos Dumont) por causa de 
uma denúncia de um suposto ataque ao prédio da UNE, que se revelara falsa. Deu 
tempo para levar até ele uma garrafa térmica com café quente (era 
louco por café). Não sei por qual motivo me disse que estavam armados, 
mas havia saído sem munição. Tudo já parecia muito estranho. 
Depois que ele e os soldados foram embora, um grupo que estava na própria UNE passou a jogar 
gasolina sobre a barricada de madeira ( e eu assistindo a tudo, tipo um
Forest Gump mirim). A notícia do golpe se espalhou como uma faísca. Imagens A TV Rio mostrava ao vivo que o general Cesar Montagna havia tomado o Forte 
de Copacabana e uma imagem de Nossa Senhora da Aparecida circulava 
entre civis que se dirigiam ao local, comemorando a reviravolta. Mais uma notícia :"botaram fogo 
na UNE!!!". A invasão se consumara ou o pessoal que estava lá dentro 
batera em retirada? João das Neves, do CPC da UNE ( e mais tarde 
criador do Teatro Opinião) e outros pularam o muro de trás do prédio e 
fugiram pela vila que eu morava. Deixaram lá uma "matriz"do disco com 
as músicas da peça "O auto dos 99%" (várias delas foram aproveitadas 
pelo cantor e humorista Ari Toledo, nos anos seguintes), que ainda 
estava na fase de ensaios. 
Meu tio afim aparece, já de noite, em roupas civis, dizendo que quando 
retornaram à base foram dispensados pelo oficial de dia. Como ele morava na Ilha do 
Governador, preferiu aguardar os acontecimentos em área mais próxima, 
na Praia do Flamengo. 
Ficamos alguns dias sem aula. Quando o colégio reabriu, soubemos que o 
diretor geral (e também catedrático de História, Roberto Bandeira 
Acioly) havia sido destituído. Passaram-se algumas semanas (ou dias?), 
e perdemos nosso ótimo professor de português (demitido, provavelmente 
porque era um dos coordenadores da campanha JK 65). 
Meu tio Laforet, que tinha cruz de guerra (por missões no litoral 
brasileiro e um ataque a um submarino alemão), foi detido na Base 
Aérea do Galeão. Era notoriamente envolvido em política, tendo 
participado do encontro de Jango com os sargentos, no Automóvel Clube (Rua do Passeio). 
Foi rapidamente afastado da Aeronáutica (reformado como morto) e 
impedido de exercer sua profissão - mecânico de aeronaves - em 
companhias aéreas civis. 
Poucos dias depois, na casa de outro tio da Aeronáutica (com posições 
políticas opostas, pois foi a favor do golpe), na Ilha do Governador, 
acompanhamos pelo rádio a votação no Congresso que elegeu, 
indiretamente, o marechal Humberto de Alencar Castelo Branco para a 
presidência, disputando com dois militares graduados (marechal Dutra e 
Juarez Távora). Esse meu tio, que era muito sensato e também muito 
querido por mim, ficou satisfeito com a escolha. Não tínhamos ainda 
ideia que o regime militar duraria tanto. "

PS1- Laforet foi anistiado e depois promovido post mortem. Embora fosse um fumante inveterado, gozou de boa saúde até envelhecer (não me lembro dele sequer resfriado).  Nunca ouvi uma palavra de amargura pelo afastamento da vida militar. Veio para o Rio no início dos anos 1950, e da terra natal (São Lourenço do Sul) guardava o gosto pelo churrasco e o chimarrão (quando era criança, era meio "obrigado" a tomar; aprendi a gostar e sinto falta de compatilhar uma rodada de chimarrão por aqui);
PS2- meu outrro tio da Aeronáutica, que também me ensinou muitas coisas (antes da vida militar, trabalhou nos primeiros poços de petróleo na Bahia), inclusive a respeitar opiniões divergentes, viveu até os 90 anos. Dois primos seguiram a carreira militar e se tornaram oficiais graduados, por mérito profissional. Não se envolveram com política;
PS2 - voltei a frequentar o prédio da ex-UNE quando foi transformado no Conservatório Nacional de Teatro. Fazia parte do "publico cobaia", que assistia de graça as peças encenadas pelos estudantes (ótimas, na minha visão da época;.nunca esqueci a série do teatro de absurdo).

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