Intolerâncias e conflitos

Jornal do BrasilGeorge Vidor*
O ser humano não tem vocação para eremita. As luzes da cidade exercem sobre nós uma estranha e incontrolável atração. Os franceses chamam as casas de campo ou na praia de “maison secondaire”, uma segunda residência, ainda que até possam passar mais tempo nelas do que nas ditas residências principais. Essa nossa impulsão gregária nos obriga a aceitar regras de convivência. Nem Bakunin ou o príncipe Kropotkin conseguiram imaginar uma sociedade sem governo (“quem vai controlar os trens?”, indagava Bakunin), embora vissem o Estado como causa de todos os males. “Se hay gobierno soy contra”, é uma frase que não está associada aos que têm aversão à política, mas sim aos que pensam em política o tempo todo.
A política está em nossas vidas, por mais chato que isso seja. E devido a essa chatice, a política acaba nas mãos de pessoas extremamente vaidosas, messiânicas, defensoras de interesses particulares ou corporativos. Em determinado momento fica a impressão que há uma disputa do poder pelo poder em si, tamanho é o desvario de tal embate. Quase ninguém acredita que as iniciativas políticas estejam atreladas ao interesse público. Nesse clima de desconfiança geral, o Brasil está hoje mergulhado em um turbilhão de conflitos. A epidemia de criminalidade que atormenta os brasileiros pacatos gerou uma nostalgia pelo regime militar. Cresce o número de eleitores que almejam por um Estado forte, comandado por algum centurião romano.
Os militares têm muito mais o que fazer. Estamos desguarnecidos, atacados por terra, mar e ar. E os “invasores” são bandos de marginais, delinquentes e bandidos cruéis, com ramificações por todos os lados, dentro das nossas cidades. A quantidade de armamento leve e pesado que sobe os morros é um escândalo. Não é mais um caso de polícia. É uma questão de segurança nacional. Milícias armadas, formadas por ex-policiais ou policiais da ativa, ameaçando o poder público, não são uma questão de segurança nacional? Para combater grupos armados revolucionários, formados quase sempre por jovens de classe média, mais sonhadores do que impetuosos, os militares entraram em campo (sob o argumento de que esses grupos eram orientados por nações estrangeiras, como Cuba, Rússia, China, Coreia do Norte). Deveriam ser agora convocados para a missão de vencer o crime organizado, e não para assumir as rédeas do governo, que tem outras tarefas, como cuidar das finanças públicas, de políticas de educação, saúde etc.
Nesse turbilhão de conflitos ainda sobra espaço para pragmatismo e para quem defenda um Estado mais enxuto, sem que o peso da máquina pública continue a sufocar os cidadãos, especialmente por ineficiências. Essa discussão inevitavelmente se inclina para o lado ideológico. Não esqueço até hoje o dia do leilão de privatização da Usiminas, no governo Collor. O primeiro fora adiado, por força de liminares. O prédio da extinta Bolsa de Valores do Rio, na Bolsa do Rio, estava protegido por meia dúzia de policiais militares. Os desavisados que chegavam como convidados para acompanhar o leilão, suspenso, eram recebidos com vaias, farinha e ovos por manifestantes. Marcado o segundo leilão, o governo Brizola, responsável pela segurança, fez um “corredor” de acesso à Bolsa na Praça XV. Na verdade, um “corredor polonês”, pois havia manifestantes de um lado e de outro. Eu, de gravata borboleta; e José Gorayeb, assessor de imprensa do BNDES, com seu bigode a la Dartagnan, passávamos por ali. Um manifestante com bigodes grossos e camiseta estampada com a figura de Stalin, nos disse: “voces estão acabando com o mundo!”. Ele não havia percebido que a gravata borboleta era apenas um disfarce para a minha falsa elegância e então respondi: “Rapaz, isso é só o leilão de uma siderúrgica”.
Como sonhar ainda não foi proibido, sonho que o processo eleitoral que se inicia não seja marcado por tantas intolerâncias.
* O jornalista não gosta de escrever sobre política.  Porém, todavia, contudo...