Trotsky, Eichmann e a banalização do mal




Trotsky, Eichmann e a banalização do mal
George Vidor (*)
Nesses  dias mais calmos de verão, quando muita gente sai de férias e até o trânsito nas grandes cidades fica mais civilizado, assisti no Netflix uma série da TV russa sobre a vida adulta de Leon Trotsky e devorei o livro de Hanna Arendt em que ela, a propósito do julgamento de Adolph Eichmann em Jerusalém, desenvolve sua tese sobre a banalização do mal.
Na minha época de política estudantil, Trotsky era admirado pelo que considerávamos grupos mais radicais. Os trotskistas pertenciam a uma organização conhecida como IV Internacional. Depois que foi expulso da União Soviética em 1933, Trotsky passou a apregoar abertamente uma revolução mundial, argumentando como improvável o desenvolvimento do socialismo em um só país, como acontecia na URSS, onde Josef Stálin (Koba) estava à frente do governo soviético e do partido comunista. Stálin e Trotsky eram mais que adversários; eram inimigos. A série russa mostra bem que Leon Trotsky talvez tenha sido o maior líder da revolução bolchevique (embora tenha aderido ao partido apenas seis meses antes). Mas quase saia do tapa com todos os membros do Politburo, inclusive Lênin. Aliou-se a Lênin por conveniência de ambos. Nunca foram amigos.
A série da TV russa é ótima. Atores excelentes, mesclando discussões filosóficas com fatos reais (ou supostos fatos reais).  Trotsky e os bolcheviques praticaram barbaridades. Executaram inocentes e não tiveram qualquer benevolência diante de qualquer discordância. A banalização do mal.
Um lado tenebroso do ser humano que a escritora Hanna Arendt sintetizou brilhantemente em seus textos para a revista New Yorker, na cobertura do julgamento de Adolph Eichmann, criminoso de guerra. Eichmann era uma pessoa medíocre que só tinha como objetivo ascender na hierarquia da SS durante o regime nazista. Não passou do equivalente a tenente coronel. Mas executava ordens sem perstanejar. Antes da II Guerra e no início dela foi o executor do programa de deportação de judeus. Na época, o objetivo declarado dos nazistas era deixar a Gross Deutschland  (Alemanha, Áustria e o Protetorado formado por Morávia e Boêmia) “livre” de judeus. Eichmannn chegou a visitar a Palestina em 1937, e foi expulso de lá pelos ingleses, que governavam a região. Quando Hitler ordenou a Solução Final e foram criados os campos de extermínio, Eichmann foi o responsável pelo transporte dos judeus em trens de carga, A história do holocausto é bem conhecida, mas quando se conhece o andamento do processo, ela se torna ainda mais trágica. Em 1944, já com as tropas russas avançando em direção da Alemanha, os nazistas, contrariando até as autoridades locais, transportaram em dois meses 300 mil judeus da Hungria para Auschiwtz, na Polônia, onde foram exterminados nas câmaras de gás.
Terminada a guerra, Eichmann foi preso pelos Aliados mas não teve sua verdadeira identidade reconhecida. Acabou se safando. Viveu em Hamburgo por quatro anos até que, com um passaporte falso, migrou para a Argentina. Morou lá com a família até 1960 quando foi capturado por um comando da Mossad, a política secreta de Israel. Levado clandestinamente para Jerusalém, onde foi julgado por um tribunal israelense. No julgamento Eichmann se defendeu afirmando que não foi responsável pelo extermínio dos judeus e de outros povos desprezados pelos nazistas (ciganos, armênios).  Executava ordens; era o responsável pelo sistema de transporte. Parecia até sincero na defesa de sua “inocência”.   
O tribunal o condenou à morte (houve até uma discussão na época sobre se um criminoso de guerra como ele não deveria ter sido julgado por um tribunal internacional ou então deportado para a Alemanha). Encarou a sentença com serenidade. Tomou meia garrafa de vinho uma hora antes de ser pendurado na forca.
A banalização do mal não é uma apenas uma característica de ideologias sórdidas e de regimes autoritários. Está mais presente em nossas vidas do que se poderia supor. Nas organizações terroristas, nos bandos de criminosos, nas milícias, nos aparelhos de estado encarregados da repressão, na corrupção de governantes e políticos, etc.
A democracia e a liberdade de expressão continuarão sendo o maior antídoto contra essa banalização. Não esqueçamos disso.
(*) O jornalista também expressa suas opiniões e faz comentários no Canal George Vidor no YouTube, com reprodução no site do Jornal do Brasil (www.jb.com.br)

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