Texto Sobre Machado de Assis para o Livro Brasileiros


José Maria Machado de Assis. É nosso escritor maior. Ponto de exclamação. Suas principais obras, escritas durante o século XIX, permanecem atuais. Na língua portuguesa, sua arte de narrar o cotidiano talvez só se compare a de seu contemporâneo Eça de Queiroz. Mas não vamos voltar a essa polêmica, pois aqui se trata de Grandes Brasileiros, e Eça era português.
Fui apresentado a Machado nos idos de ginásio. Para quem não sabe o que é isso, era um período de quatro anos que vinha logo após os cinco anos do ensino primário. Agora tudo equivale ao chamado ensino fundamental. Não lembro exatamente quando essa apresentação a Machado ocorreu, se no segundo ou terceiro ano do meu ginásio (em 1965 ou 1966, quando o país se encontrava ainda nos limiares de um regime militar iniciado em abril de 1964, e que se estenderia até 1985). Estudava na então seção Sul – Humaitá – do Colégio Pedro II, no Rio de Janeiro.
Machado bem que poderia ter dado aula de literatura no CP II. Mas no seu tempo não chegou a ter o devido reconhecimento para ser admitido como grande mestre no colégio padrão, cujas provas eram às vezes assistidas pelo próprio Imperador que batizara a instituição. José Maria Machado de Assis nasceu pobre, em uma casa simples, situada numa das ladeiras do morro do Livramento, próximo à zona portuária do Rio. Pouco se conhece da sua família, mas pelo menos uma das avós teria sido escrava. Machado sempre foi discreto quanto à sua vida pessoal e, assim, nos seus próprios escritos não há muitas pistas sobre sua intimidade.
Durante parte de sua vida conviveu com a escravidão, abolida em 13 de maio de 1888. Porém, em sua obra só retratou escravos domésticos integrados à vida urbana. Um dos seus grandes amigos foi o abolicionista Joaquim Nabuco. Deveria saber muito bem o que era o preconceito em um país mestiço como o nosso. Preconceito que se revela nas tentativas, posteriores à sua morte, de “embranquecê-lo” em fotos. Qual era exatamente a cor da sua pele, pouco importa, na verdade.
Na minha época de ginásio, o Pedro II ainda levava a fama de colégio padrão. Tinha, sem dúvida, ótimos professores, mas certamente já perdera a dianteira do ensino secundário (ginásio e colegial, este dividido em científico e clássico) para algumas escolas particulares do Rio de Janeiro. O professor de português que nos apresentou a Machado se chamava Capistrano. Era um senhor sisudo, um dos mais velhos que passaram pela nossa turma de ginásio. Suponho que pudesse ter menos que os meus 67 anos de agora. Todavia, era uma época em que as pessoas “envelheciam” mais cedo, ou tinham aparência de mais velhos logo que alcançavam a faixa dos 50. Embora sisudo, as aulas do professor Capistrano eram boas. Aprendíamos com ele.  E a tarefa que nos deu como trabalho de casa foi a leitura de Dom Casmurro, a mais conhecida obra de Machado – quase uma leitura obrigatória nos bancos escolares daquele período.
Além das redações habituais que fazíamos para o mestre atestar nosso nível de compreensão e entendimento dos livros, o professor Capistrano resolveu, especificamente sobre Dom Casmurro, promover um debate na sala de aula. A grande maioria dos alunos era de classe média baixa ou média “média” da Zona Sul do Rio. As famílias de classe alta ou média alta estavam progressivamente se afastando das escolas públicas. No Pedro II, falávamos de política mais do que o comum nas demais escolas secundaristas. Mas estávamos longe se ser um colégio vanguardista. O uniforme era obrigatório. Os meninos usavam gravata. Até o início dos anos 1960, os alunos também usavam jaqueta de cor caqui escura.  Quando entrei no colégio, em 1964, o uniforme já estava mais “leve”. As garotas brigavam com o comprimento das saias. As mais ousadas enrolavam a saia na cintura para deixá-las mais curtas, deixando os joelhos à mostra (uau!!!). Obviamente, que dentro da escola as inspetoras mandavam que elas se “recompusessem”. Então, vamos classificar o ambiente da seção Sul do CPII daqueles anos 1960 nem como vanguardista, nem como conservador. Um meio termo. Ambiente mais liberal e aberto em algumas aulas, e, em outras, bem tradicional.
Deixemos agora essa tentativa de “copiar” o estilo de narrativa machadiana, com idas e vindas, e voltemos ao tema principal: o debate em sala de aula sobre Dom Casmurro. As meninas foram duras (acho que até cruéis), com a personagem Capitu. “Compraram” a versão de Bentinho. Os garotos foram mais complacentes e se inclinaram para a dúvida. As moças condenaram Capitu, e os moços a absolveram. Curioso. Logo as mulheres, tão discriminadas na história. Mas quando o tema é infidelidade, traição conjugal... O sisudo professor Capistrano, sorria. Ficou extasiado (e visivelmente feliz) com o debate em si. Como não fora o primeiro debate que promovera, possivelmente não se surpreendeu com a reação dos alunos. O importante é que atingira seu objetivo, de causar polêmica. Exatamente o deve ter pretendido Machado em seu maravilhoso texto. Capitu, uma mulher infiel, ou não?
Só vim a reler Dom Casmurro passados 50 anos, daquele debate. Motivado para escrever este texto.  Na minha inexperiência juvenil, certamente não consegui saborear então o estilo e a narrativa do nosso escritor maior. Publicado em 1899 (nove anos antes da morte de Machado), Dom Casmurro é mesmo uma obra prima. Em sua peculiar narrativa, Machado nos transportou ao Rio da segunda metade do século XIX, descrevendo seus costumes e mergulhando na alma (des)humana. O narrador é o próprio Bento Santiago, personagem central, mas a pena de Machado faz com que Bentinho deixe escapulir a dúvida. Só os mistérios da vida podem explicar o amor de Capitu por Bentinho, completamente submisso à mãe viúva e carola. Capitu tinha mesmo muito mais a ver com Escobar, amigo do peito e suposto traidor. Deixo-vos com a polêmica que Machado propositadamente decidiu perpetuar entre seus leitores. Fico apenas com a sensação de como nossa alma é pequena.
Dom Casmurro é o último dos livros da chamada trilogia de ouro de Machado, que inclui Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881) e Quincas Borba (1891). Uma trilogia em que sua narrativa se afasta do romantismo e se inclina para o realismo sarcástico. O primeiro livro da trilogia é genial, em todos os sentidos, a começar pela ideia de um morto escrevendo suas próprias memórias. A sutil ironia e o sarcasmo tornam uma delícia a leitura de Brás Cubas. As Memórias são hoje até mais apreciadas que Dom Casmurro. É difícil estabelecer um ranking. Meu palpite é que a leitura mais recente é que acaba ganhando. Para mim, Brás Cubas estava na frente, até reler Dom Casmurro. Agora... já não sei mais.
Meu viés jornalístico me leva a incluir um conto nesse topo das obras de Machado. Ri muito com O alienista. E não paro de pensar nesse livro diante do mundo de loucos em que vivemos. O médico psiquiatra Simão Bacamarte, de Itaguaí, tinha toda razão: ninguém escapa da peneira. Dá para internar todos e todas. Isso só não é preciso porque o mundo já é um hospício planetário. Se usarmos a lógica do médico Simão Bacamarte de O Alienista, não sobra um que não seja alienado, maluco, desmiolado. Machado sabia muito bem que, de médico e louco, todos nós temos um pouco.
A literatura de Machado não é rebuscada. No entanto, é uma tarefa quase impossível tentar adaptá-la para o cinema ou para uma novela de televisão, por exemplo. Todas as tentativas foram frustrantes, porque não estiveram à altura do texto do nosso escritor maior.
Difícil também traduzi-la para outros idiomas. Pouco tempo depois da queda do Muro, estive em Berlim, em uma visita profissional. Lá me apresentaram a um professor da Universidade Livre de Berlim, que havia morado em Fortaleza e desde então se apaixonara pela literatura brasileira.  Na chamada meia idade, o professor tinha um pouco do estilo alternativo berlinense – e a queda do Muro nem tinha ainda provocado o efeito transformador da parte oriental da cidade. Estava há dez anos trabalhando na tradução de Machado para o idioma de Goethe e Schiller. A dificuldade estava em encontrar o tom adequado na língua alemã. Em uma simples conversa dava para perceber que não se tratava de uma questão de competência do tradutor. Era mesmo um tremendo desafio. Não sei se ele completou a tarefa. Só agora ressurge a curiosidade sobre isso. De qualquer forma, em alemão só sei ler alguns cardápios.
Casualidades me fizeram despertar interesse pela vida de Machado de Assis. Uma delas foi a criação de um espaço nas páginas de economia do jornal O Globo, lá pelos anos 1980. Queríamos tratar de tecnologia, inovação, e atrair mais atenção de leitores da classe A, segmento para o qual O Globo, na época, não detinha a liderança no Rio. O editor chefe do jornal achava que as páginas de economia poderiam ser um chamariz para esse público, por meio da abordagem de temas não usuais até então (informática, indicadores financeiros, etc). Uma ideia do New York Times nos inspirou e criamos uma seção semanal chamada Marcas & Patentes. Para estreia, descobrimos um despacho de Machado de Assis sobre o tema, que caía como uma luva para a abertura da nova seção. Sim, Machado foi um funcionário público. E exemplar. Mais para o fim da sua carreira no funcionalismo chegou a diretor do departamento que respondia pela apreciação de marcas e patentes no ministério que cuidava do comércio e da indústria. É claro que nunca iríamos conseguir publicar novamente na seção algo tão interessante como o texto do nosso Machado.
A carreira do escritor como funcionário foi longa e se estendeu até 1907, quando se licenciou para tratamento de saúde, e não mais retornou ao serviço ativo porque morreria, bem doente, em 1908 (na madrugada de 29 de setembro, por volta das três horas).
Outra casualidade foi o Cosme Velho. A casa dos meus sogros ficava nas imediações de onde o casal Machado de Assis e a mulher Carolina Augusta de Novaes viveram a maior parte do tempo conjugal. Machado e Carolina não tiveram filhos. E a casa era alugada de uma proprietária rica. Carolina, portuguesa de nascimento, era cinco anos mais velha que Machado. Morreu em 1904. Machado viveria mais quatro anos que ela, entristecido – ou mesmo deprimido - pela viuvez.
A casa do Cosme Velho marca a história do escritor. A ponto de ser conhecido também como o Bruxo do Cosme Velho. São muitas as versões sobre a alcunha “O Bruxo”. Para mim, isso deriva da sua arte de dominar a narrativa. Coisa de bruxo. Não era um homem bonito, como atestam suas fotos (mesmo considerando-se que a qualidade dos retratos não fosse das melhores naqueles idos). Tampouco era feio. Então bruxo não pode derivar de sua aparência física. Era elegante, cordial com as mulheres, principalmente (ainda que supostas infidelidades conjugais tenham sido marcantes apenas na sua ficção literária, como a que Bentinho acusa Capitu de ter cometido). Machado teria o hábito de queimar cartas em um caldeirão, e por isso seus vizinhos o chamariam de bruxo. É fato que Machado não gostava de expor sua intimidade. Pedia aos amigos que não divulgassem o conteúdo das suas cartas. Poucas foram conhecidas. Uma delas é para a mulher Carolina, a quem revelava paixão. É bem provável que queimasse a correspondência, porque não reconhecia qualquer valor literário nas cartas que escrevia. Uma pena. Mas se isso era feito em um caldeirão, deixo para os biógrafos e especialistas em Machado responderem.
A casa do Cosme Velho resistiu até os anos 1970. O frisson imobiliário daqueles tempos não poupou a casa onde nosso maior escritor passou grande parte da vida. Hoje há lá um edifício comercial, com lojas no térreo. Ah, sim, existe uma placa indicando que aquele local abrigara o casal Machado de Assis. Antes do Cosme Velho, Carolina e Machado viviam em uma pequena casa à Rua do Catete, quando o proprietário do imóvel a requisitou. O orçamento doméstico era apertado. Por não ter ensino superior, Machado ascendeu lentamente no funcionalismo público. Ainda estava na ativa, embora licenciado por motivo de saúde, quando morreu. Dependia do seu salário de funcionário, pois os rendimentos como escritor e colaborador de jornais e revistas eram parcos. Carolina não descendia de uma família pobre como a de Machado, mas não tinha posses para reforçar o orçamento doméstico.
Por sorte, Machado começava a ter admiradores. Uma rica proprietária de terras no bairro de Laranjeiras, que construíra casas para alugar no terreno de uma antiga chácara na rua Cosme Velho, ofereceu um dos imóveis ao casal Machado e Carolina. Essa parte do então bairro de Laranjeiras era afastada do centro. E lá viviam pessoas mais abastadas. Machado não tinha como pagar o aluguel, porém a proprietária, como que adivinhando a futura trajetória do escritor, cobrou-lhe o mesmo valor que ele já arcava na casa da rua do Catete. Assim, o casal se mudou para uma casa mais ampla, e retirada do bochicho da capital do Império. O casal Machado de Assis não teve filhos.  E os herdeiros da propriedade não deram o devido valor a essa estada do nosso escritor. Nenhum mecenas apareceu para comprá-la. Por isso o imóvel veio abaixo. E assim foi-se uma parte da memória da cidade e da cultura brasileira.  
Seguindo as casualidades, como passei quase toda a minha infância e adolescência nos bairros do Flamengo e do Catete, sempre me deparei com cenários retratados por Machado de Assis. Nesses bairros siameses é que se encontra a rua que homenageia Machado de Assis. Sou testemunha das eventuais ressacas e ondas fortes que “causaram a morte acidental do personagem Escobar” na então praia que ficava defronte ao bairro da Glória. Praia que foi aterrada pelo Parque do Flamengo, nos anos 1950/1960.
Nasci em uma casa de saúde que não mais existe à rua do Riachuelo, a antiga rua de Matacavalos várias vezes citada nas obras de Machado (a amizade entre Capitu e Bentinho começa quando ambos moravam em casas vizinhas na rua de Matacavalos, chamada como tal porque era o início do caminho que fazia a ligação do Rio colonial ao interior, inclusive à cidade de Itaguaí, cenário de outras passagens nos livros de Machado). Machado certamente tinha alguma predileção por essa rua, assim como pelos bairros do Catete, da Glória, do Flamengo, de Santa Teresa e do Engenho Novo.
Voltando à questão financeira dos Machado: como era comum naquela época, muito da vida literária dos escritores transcorria por jornais e revistas. Contos, crônicas, poemas, peças de teatro e até mesmo livros completos eram publicados sob a forma de folhetins nesses veículos. Dom Casmurro foi o primeiro livro completo de Machado não publicado antecipadamente, em parte ou de maneira total, nos jornais para os quais o escritor colaborava.
E foi pelos jornais que Machado de Assis e Eça de Queiroz travaram uma rivalidade literária. Machado fez uma crítica dura ao “Primo Basílio”, de Eça. Chegou a dar a entender que o romance seria inspirado em uma outra obra, de um escritor francês. Eça negou essa inspiração, pois Primo Basílio teria sido escrito antes da publicação da obra do francês. Mas concordou com críticas de Machado a questões literárias propriamente ditas.
O certo é que Eça, escrevendo de Paris para jornais brasileiros, como cronista e correspondente, dava algumas alfinetadas em Machado. Eça não deve ter tido tempo hábil para ler Dom Casmurro com afinco, pois faleceu em 1900, não muito depois da publicação do livro. A rivalidade literária só pode ter existido por mera vaidade de ambos, pois, além do nome comum, José Maria, não são poucas as afinidades entre os dois escritores. Sátira, ironia, crítica, descrição da vida mundana, mergulho na alma (des)humana, tudo isso está presente nas obras dos dois grandes escritores da língua portuguesa no século XIX.
A diferença mais expressiva entre os dois é que Eça viveu longe de sua pátria, e Machado não saiu dos trópicos. Eça olhou criticamente para a sociedade portuguesa de longe, sob o ponto de uma vista de uma cidade que já era a mais cosmopolita do Ocidente. O olhar de Machado foi de perto, mais próximo da realidade que inspirou sua ficção.
Eça viveu relativamente pouco (faleceu com 55 anos). Machado chegou quase aos 70. Eça também dependeu do funcionalismo público para sobreviver financeiramente. Aos 25 anos ingressou na carreira diplomática. Ambos frequentaram os círculos literários e tiveram suas obras reconhecidas no próprio meio.
No caso de Machado, esse reconhecimento se torna mais profundo quando é convidado a integrar a recém fundada Academia Brasileira de Letras e a ele é oferecida a presidência. Nos moldes da Academia francesa, a ABL ainda hoje é vista como a Casa de Machado de Assis. Ocupou a cadeira número 1. Seus restos mortais foram trasladados para o Mausoléu da ABL. Sempre será um imortal enquanto a ABL existir. Cada novo ocupante da cadeira número 1 tem a obrigação de fazer referência a Machado em seu discurso de posse.
Aos inúmeros admiradores de Machado de Assis, peço que me perdoem se não consegui prestar uma homenagem à altura do nosso escritor maior. Seria demasiada pretensão (ainda que tenha me aventurado a copiar seu estilo em certos trechos). A homenagem que Machado gostaria mesmo de receber é a de continuarmos a ler seus livros. E cabe a nós, seus admiradores, apresentá-lo aos mais jovens, como fez o meu velho professor Capistrano nos tempos do Colégio Pedro II.   

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