E lá se foram 200 anos...

E lá se foram 200 anos... 

 George Vidor 

 Após ou durante sua terceira viagem ao país, o escritor austríaco Stefan Zweig escreveu Brasil país do futuro, uma obra polêmica pois muitos acreditam que teria sido feita sob encomenda do governo Vargas, em plena ditadura do Estado Novo. Zweig era um reputado humanista que vislumbrou o Brasil como país do futuro, convencido de maneira honesta e sincera a partir de muita leitura, observação factual e de depoimentos que ele próprio captou viajando por aqui. 

Estava afastado da sua Viena natal, anexada pelos nazistas em 1938, no que eles chamavam de Grande Alemanha. Judeu, de uma família razoavelmente abastada (o pai tinha uma indústria têxtil), ele, assim como outros intelectuais de renome na Áustria, viu-se obrigado a escapar do fanatismo nazista. Embarcou para Londres. Lá se sentiu incomodado pelo ambiente reinante quando a Inglaterra declarou guerra à Alemanha hitlerista. Por sua cidadania originalmente austríaca, era visto com desconfiança pelos ingleses. E em seu próprio país seria considerado traidor. O que poderia fazer? 

 Uma opção seria ir para os Estados Unidos, porém desde 1930 os americanos dificultavam a imigração, majoritariamente europeia, na época. O Brasil era uma nação que não sofria ameaças em suas fronteiras – ainda que houvesse uma fantasiosa animosidade e rivalidade com a Argentina. Zweig identificara o Brasil como um pouso seguro, embora os críticos de seu livro levantem a hipótese que talvez o tenha escrito pensando em receber a guarita do governo Vargas. 

 Na verdade, com o que se passou em seguida, pode-se deduzir que não foi bem assim. Zweig mudou-se ainda em 1941 para o Rio, acompanhado da mulher. Como era um escritor consagrado, foi recebido calorosamente por intelectuais da então capital federal brasileira. No entanto, acabou se refugiando em uma casa na cidade de Petrópolis (RJ), talvez buscando um clima mais europeu. Porém o local era um pouco sombrio, não tão próximo do centro histórico. Zweig e a mulher se isolaram nessa casa, recebendo poucas visitas, quase sem acesso a livros em idiomas que ele dominava (alemão, inglês e francês). Um ambiente nada acolhedor para quem já dava sinais de depressão.

 As notícias que chegavam da Europa eram cada vez mais assustadoras, com o avanço das tropas nazistas. Aos 62 anos, achando-se muito velho e, a seu ver, sem tempo para esperar o renascer da sua querida Europa, decidiu, junto com a mulher, tirar a própria vida, deixando uma carta em que inocentava o Brasil de qualquer influência sobre sua atitude drástica. Carta muito bem escrita, como aliás, tudo que Zweig escreveu. Já morando no Brasil escreveu um brilhante livro de memórias, “O mundo que eu vi”, uma descrição do século XIX e início do século XX. Zweig foi um excelente biógrafo (Maria Antonieta, Fernão de Magalhães, Balzac, entre outros, são obras-primas) e caprichou na sua própria, publicada apenas após sua morte. 

 Brasil país do futuro ainda me surpreende positivamente. Não tem nada de ufanismo. Zweig, com olhar estrangeiro, fez uma ótima síntese sobre nossa formação política e econômica. E de fato havia naquela ocasião muitos motivos para ser esperançoso com o Brasil. 

 Ao celebrarmos os 200 anos da independência, olhando para trás em nossa história, vemos quantos percalços essa nação enfrentou. A começar pelas rebeliões e conflitos políticos dos primeiros 30 anos de independência. Não houve uma adesão imediata ao Grito do Ipiranga. Toda a região do Grão Pará (do Maranhão ao Amazonas) estava habituada a responder administrativamente direto a Lisboa. Não tinha relação, nem mesmo comercial, com a corte no Rio. As províncias da Bahia e Pernambuco igualmente desconfiavam da corte e não queriam se submeter às ordens do novo Império. Durante a regência, até a declaração da maioridade de D. Pedro II, várias revoltas ocorreram. O Rio Grande do Sul foi uma república separatista farroupilha durante 10 anos (1835-1845), na célebre Guerra dos Farrapos. 

 A almejada unidade nacional foi conquistada a muito custo. Economicamente, o jovem país dependia do café, do açúcar, do algodão, do tabaco e da erva-mate. A mineração do ouro e dos diamantes minguara. Embora a chaga da escravidão não tivesse sido eliminada, somente a partir de 1850, com a extinção oficial do famigerado tráfico negreiro, outras atividades emergiram e o país ganhou impulso com investimentos em infraestrutura (ferrovias, saneamento básico, iluminação pública a gás, canais hidroviários, atracadouros, uma indústria iniciante e o novo Banco do Brasil). Uma observação relevante: o Brasil foi um dos primeiros países a contar com ferrovias. 

 Durante o segundo reinado foram construídos cerca de 10 mil quilômetros de estradas de ferro. Mas veio a Guerra do Paraguai e o desequilíbrio orçamentário se acentuou. O Império era o déficit, afirmou categoricamente Rui Barbosa, Ministro da Fazenda do governo provisório instaurado após a Proclamação da República, em novembro de 1889. 

 Na primeira metade do século XX a dependência do Brasil à exportação de café se acentuou ainda mais. O Brasil até então era um país essencialmente rural. Para se ter uma ideia, por volta de 1870, as capitais brasileiras não congregavam mais que 10% da população (sendo que Rio, Salvador e Recife-Olinda concentravam grande parte desse número). Apenas 16% dos brasileiros eram letrados. Entre as mulheres, esse índice caía para 13%. 99% dos escravos não sabiam ler e escrever. Estimulada ainda pelo Império e pelos primeiros governos da República, o Brasil recebeu levas de imigrantes europeus, japoneses e sírio-libaneses até 1910. Em 1900, metade da população da cidade de São Paulo falava dialetos italianos. E a outra metade misturava português com tupi - guarani. 

 Em meados do século XX, o Brasil começaria a viver o fenômeno da urbanização acelerada. Tínhamos dois milhões de domicílios em 1940; hoje são 75 milhões (e a população não se multiplicou por 37 desde então). Se até 1940 o crescimento demográfico havia sido calcado na imigração, voluntária (europeia, asiática) e forçada (africana), a partir de 1940 o boom demográfico se deveu essencialmente a altas taxas de fecundidade internas, fenômeno que se prolongaria até os anos 1970. A imigração começou a estancar em 1936, quando foi aprovada uma lei que definia um percentual máximo de trabalhadores estrangeiros nas empresas. 

 Desde 2010 o Brasil está em forte processo de transição demográfica, com queda acentuada da taxa de natalidade, em parte compensada pelo aumento da longevidade da população. A população na faixa etária de 20 a 30 anos – simultaneamente apta a trabalhar, estudar, poupar, investir e consumir – está encolhendo. Deixamos de ter o crescimento exponencial da população como alavanca para impulsionar a economia (na Copa do Mundo de Futebol de 1970, o jingle que marcou as transmissões do campeonato pela TV começa assim”90 milhões em ação, prá frente Brasil...”). Em breve o recenseamento de 2022 dirá quantos somos, possivelmente 220 milhões de habitantes, 

 O Brasil de hoje tem como desafio a busca de modelos mais sustentáveis, que contribuam para aumento da renda média e de melhores condições de vida de parcela expressiva de brasileiras que vivem à margem das comodidades do mundo moderno. Existe uma base para que isso aconteça. Os índices de analfabetismo, que chegavam a 50% no início dos anos 1950, reduziram-se para bem menos que 10%, e não são mais reflexos de jovens iletrados, mas sim de gerações mais velhas que não aprenderam a ler e a escrever. Nas universidades há 7 sete milhões de estudantes (seis milhões em escolas particulares), dos quais cerca de 1 milhão se formam anualmente. No entanto, o nosso ensino público peca pela má qualidade, e tem pela frente grandes desafios pedagógicos e motivacionais. O avanço da tecnologia vem transformando os processos produtivos e a educação não avança no mesmo ritmo. 

 Os segmentos mais dinâmicos da economia brasileira absorvem mão-deobra indiretamente, por meio de serviços de toda a ordem. A população brasileira vive nas cidades (88% do total, sendo que em estados como São Paulo, esse percentual chega a 95%). Cem municípios brasileiros – especialmente as regiões metropolitanas – concentram metade da população. Todavia, deixamos de ser um país em que a economia praticamente se limitava a uma faixa de no máximo 200 quilômetros da costa. O Brasil do Centro-Oeste, do oeste paulista, do Triângulo Mineiro, do Matopiba (sul do Maranhão e do Piauí, Norte do Tocantins e a região do cerrado na Bahia), explodiu com o domínio da agricultura tropical. Produz-se mais que uma tonelada de grãos por habitante. O Brasil, que desde D. João VI sempre importou grandes volumes de trigo, caminha para estar entre os grandes produtores mundiais do cereal. Estamos recuperando o atraso nos laticínios. E o azeite de oliva brasileiro não está longe de ser tornar um item gourmet nas prateleiras dos mercados. 

 A corrente de comércio do Brasil com o exterior ultrapassou a casa dos 500 bilhões de dólares. Sim, temos muita dependência do comércio com a China, com as exportações ainda concentradas em petróleo bruto, minérios, soja, carnes. Mas hoje quem não tem igual dependência?

 Em grande parte desses 200 de independência a economia brasileira enfrentou sérias crises cambiais. Viveu quase toda a metade do século XX mergulhada em inflação crônica e aguda. A relativa estabilidade monetária foi conquistada a duras penas, ancorada em taxas de juros altíssimas. A disciplina orçamentária ainda é um sonho, mas institucionalmente o país avançou nesse campo. Mensalmente sabemos se a União, estados e munícipios estão acumulando déficit ou superávit, se a dívida pública sobe ou desce (em valores ou proporção do PIB). 

 Ainda precisamos encontrar um caminho mais sustentável para a antiga região do Grão-Pará. Derrubar, queimar florestas, é um contrassenso em um mundo voltado para a descarbonização, para iniciativas que atenuem as mudanças climáticas. Deixar o garimpo ilegal e a pesca predatória poluírem os rios amazônicos é um escândalo. Por outro lado, hidrelétricas modernas, de baixo impacto ambiental seriam muito bem-vindas na região, com contrapartidas que levariam infraestrutura a uma população quase esquecida no tempo e no espaço. 

 O Brasil tem a vantagem de ser um país que nas próximas décadas estará entre os principais produtores de hidrocarbonetos (de origem fóssil) e de energia limpa, renovável. Mesmo que o PIB cresça a um ritmo anual de 1% a 2%, há enorme demanda reprimida por infraestrutura (transportes, energia, saneamento básico). Temos desafios imensos em questões como a segurança pública e a qualidade dos serviços de educação e saúde. Mas não podemos perder a esperança de que, quando os brasileiros comemorarem os 250 anos da independência, o país estará em outro patamar – mais civilizado, menos desigual. Não estarei aqui para ver. Mas meus netos verão. 

George Vidor é economista e jornalista.

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