Aqui, Pequim

Aqui, Pequim

POR GEORGE VIDOR
Comer foi o maior desafio do passado. Agora o que aflige mais a cidade são os grandes engarrafamentos diários
Os chineses se cumprimentam usando a expressão "como vai?". Mas em Pequim, a forma mais habitual de cumprimento é: "Você comeu hoje?". E a resposta: "Sim, comi!". Tal forma de tratamento ainda é uma reminiscência dos tempos muito difíceis, quando garantir a refeição de cada dia era um desafio.
Nas províncias ainda há chineses que passam muita dificuldade, mas em Pequim – com 23 milhões de habitantes, a capital chinesa é a terceira cidade mais populosa do país – o que mais preocupa as pessoas, especialmente os jovens prestes a casar, é a moradia. A capital chinesa ainda abriga diversos "hutong" originais. Hutong é uma palavra herdada dos mongóis que está relacionada com poço de água, em volta dos quais se construíam casas. Em grande parte dos "huntong" não há banheiro nas casas. Todos são de uso coletivo. As ruas são estreitas. Estão rareando no restante da China, mas em Pequim há leis tentando preservá-los. Viraram atração turística até mesmo para os chineses de outras regiões que não veem mais hutong onde vivem. Não por acaso os hutong remanescentes na China estão sendo invadidos por atividades comerciais (lojas, restaurantes, danceterias).
Quem vive há anos nos "hutong" não quer sair de lá. Os vizinhos se encontram para jogar conversa fora ao fim da tarde e levam uma vida bem humilde. Mas quem deseja a comodidade da vida moderna tem de buscar uma moradia cada vez mais longe do centro, no quarto ou no quinto anel que rodeia a capital. Com 16 linhas de metrô – há mais quatro projetadas ou sendo construídas -, o transporte público não dá conta de tanto movimento. A frota de sete milhões de veículos transformou Pequim na "cidade engarrafamento" (em mandarim, a palavra cassino serve tanto para o local de jogos como para congestionamentos; daí Pequim ter sido apelidada de "cidade cassino").
Os pequineses teriam inveja de andar nos metrôs do Rio ou de São Paulo na hora do rush. Se aqui os trens andam abarrotados nesses horários, em Pequim metrô é sinônimo de sardinha em lata. Passam quatro ou cinco trens até que se consiga entrar, empurrado, para dentro do vagão. Entre a casa, o trabalho, a escola e as estações de metrô ou pontos de ônibus, os moradores de Pequim recorrem à bicicleta. Melhor que seja a do sistema público – pagando 1 yuan por dia – pois a própria corre forte risco de desaparecer. Quem já não teve uma bicicleta furtada não pode se considerar verdadeiro habitante de Pequim, dizem eles, jocosamente.
O transporte público e as bicicletas não livraram Pequim de ser a "cidade cassino" , e por isso é muito comum a capital amanhecer envolvida dentro de uma névoa de poluição. O jeito é criar um rodízio para os automóveis trafegarem. E o governo lançou um programa obrigando as montadoras locais fabricarem progressivamente mais veículos com motores elétricos (a China produz 28 milhões de veículos por ano!).E ai de quem não cumpre ordens na China, mesmo nesses tempos pós-Mao tsé-tung, mais abertos à modernidade
Se os ventos ou as chuvas ajudam, o azul do céu pode ser visto, e ser admirado como na época da construção dos grandes templos e dos palácios da "cidade proibida", onde viveram 24 imperadores das dinastias Ming e Qinq, por cerca de 400 e tantos anos. O azul é uma das cores predominantes no interior dessas construções. Assim como o vermelho, que é a cor da sorte (as noivas se casam com roupas vermelhas, embora muitas já prefiram o branco, como as mulheres ocidentais). Cheios de simbolismo, os chineses têm o 9 como o número da sorte. Na "cidade proibida" havia 9.999 cômodos. Em 1911, um movimento liderado pelo médico Sun Yat Sen implantou a república na China. A "cidade proibida" foi usada pelos novos governantes até 1920 e depois abandonada. Hoje está aberta à visitação e é um dos locais históricos mais procurados de Pequim. Curioso conhecer essa imensa área protegida, proibida às pessoas comuns por séculos, e onde apenas o imperador era um homem "completo" a passar a noite com a imperatriz e cerca de três mil comcubinas. Apenas eunucos poderiam servi-lo. Os funcionários do governo tinham de ir embora antes do anoitecer.
Já não se vê na capital chinesa o movimento frenético de novas construções, como há dez ou vinte anos. Mas o prédio mais alto da China está sendo edificado. Serão cento e tantos andares. A propósito, se Pequim é a terceira mais populosa, quais são as duas que estão à frente? Chunquim (perto da represa de Três Gargantas), com 33 milhões e Xangai, com 25 milhões. A China tem 15 cidades com mais de 10 milhões de habitantes, o que torna a vida urbana uma grande confusão. Ainda é risco de vida atravessar a rua na faixa de pedestres com sinal verde. Os carros simplesmente avançam.
Com tudo isso, a China segue no caminho para reocupar a posição relativa que ostentou no mundo até a revolução industrial, antes de 1800.
 PS- o título da coluna é uma alusão às transmissões que a Rádio de Pequim fazia para o Brasil nos tempos de Mao tsé-tung, quando as relações entre os dois países estavam cortadas. Em português peffeito, e em ritmo suave, as transmissões começavam com um "Aqui, Pequim". Era engraçado, pois a maior parte do noticiário se concentrava em críticas à "camarilha revisionista soviética". Chineses e russos estavam no maior conflito para exercer influência e hegemonia sobre os movimentos comunistas nos países não comunistas. No Brasil, os comunistas estavam divididos entre o PCB (linha soviético) e o PCdoB (linha maoista), ambos clandestinos, na época, mas cada um deles se apresentando como verdadeiro representante do pensamento comunista no país.

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