Miopia

Miopia

POR GEORGE VIDOR
A arrecadação federal surpreendeu no fim do ano entre outras coisas porque ninguém acreditou no Refis
A arrecadação do governo federal deu um salto nos meses de novembro e dezembro. Especialmente por uma razão que surpreendeu as próprias autoridades fazendárias. Combatido por todos os lados, o Refis – programa que permite o parcelamento e a renegociação de dívidas tributárias – foi um tremendo sucesso. Na programação original, o ministro Henrique Meirelles tinha uma expectativa de arrecadar com o Refis cerca de R$ 14 bilhões. Com as alterações e penduricalhos que o Congresso introduziu no projeto enviado pelo governo, a estimativa de recolhimento caiu para R$ 400 milhões. Foi um tremendo bafafá. Aí as projeções foram refeitas e passaram para um patamar minguado de R$ 2 bilhões a R$ 3 bilhões. Mais um motivo para todo mundo cair de pau em cima do programa.
Pois bem, até novembro o Refis havia recolhido R$ 22 bilhões e é bem provável que tenha encerrado o ano em mais de R$ 30 bilhões. O que aconteceu para que o resultado fosse tão distinto daquele que se projetou inicialmente? Na verdade, há uma distância entre o mundo real e o que todos nós palpiteiros achamos o que é. As empresas estão sufocadas em dívidas e hoje o que elas mais desejam é arrumar a casa para poder seguir em frente. Isso inclui também dívidas bancárias, A maioria dos bancos já percebeu isso e tem aceitado negociações (mas se o cliente confessar que está com a corda no pescoço, se não tem dinheiro algum para quitar nada, bau bau; só têm êxito aqueles que juntam um dinheiro e ficam em condições de apresentar uma proposta qualquer, pois banqueiro só trata bem quem não precisa dele. Nada contra, é da natureza do negócio).
O Refis é aparentemente um programa de caridade fiscal. Pode ser visto assim quando não se olha para a frente. O governo dificilmente ia conseguir arrecadar o que estava declarado como dívida (multas sobre multas, juros moratórios, etc., que tornam o valor impagável). Claro que tem muito esperto que se aproveita disso, tornando-se devedor contumaz e ardiloso. Mas após uma terrível recessão, é natural que todos estejam trôpegos ou em frangalhos, com as devidas exceções.
A dívida tributária trava a economia, pois o setor público, no seu conjunto, é o maior agente econômico. Por um lado, a arrecadação encolhe, e por outro as empresas inadimplentes deixam de fornecer e/ou assinar contratos de prestação de serviço com entes públicos, por falta do obrigatório CND, o certificado que informa se os contribuintes estão quites com o fisco.
É mais um fator que impede a recuperação da economia. É de fato constrangedor perceber que espertalhões se beneficiam de um programa cujo objetivo é mais amplo. Porém, os ganhos que serão obtidos com a economia destravada superam em muito os defeitos do programa.
A S&P certamente não enxergou a economia por esse ângulo quando rebaixou a nota de crédito do Brasil. As agências de classificação de risco seguem um modelito e estão cansadas de quebrar a cara. Erraram vergonhosamente na crise do subprime nos Estados Unidos (ameaçando até rebaixar a maior economia do mundo, expondo-se ao ridículo). Mas são poderosas, porque o mundo econômico se financeirizou e há que se manter um relacionamento amistoso com os gestores de recursos. O que inclui ter boas notas de crédito dentro dos conceitos das principais agências internacionais de avaliação de risco. Sem direito a esperneio ou a remar contra a maré.
A economia brasileira está em recuperação, o que facilitará o ajuste fiscal. No entanto, a reforma da previdência continua indispensável, pois há um desequilíbrio estrutural crescente. O número de beneficiários aumenta mais rapidamente que o de contribuintes. Só há uma solução aritmética para essa questão: fazer com om que as pessoas contribuam por mais tempo e recebam benefícios por menos tempo, de acordo com a nova realidade do país. Se as pessoas estão vivendo mais, permanecendo também com condições laborais, físicas e mentais, não há por que não se ajustar as regras. Trabalhar não é demérito. A maioria das pessoas fica sem rumo quando para de trabalhar. Perde o convívio social, fica com uma sensação de vazio e inutilidade. Então, nesse ponto, a S&P tem razão em ver como ponto negativo o adiamento da reforma. Quanto mais o tempo passa, mais difícil a solução.
Todavia, para se compatibilizar o que se deseja para a previdência no futuro era necessário um ajuste nas regras de trabalho, para que as pessoas e os empregadores se entendam. Muitas lojas, restaurantes, e outros tipos de empresas só precisam de pessoas para trabalhar em determinadas horas do dia. E muitas pessoas só têm algumas horas disponíveis ao longo do dia. Há, nesse caso, uma convergência de interesses. Mas antes a legislação não permitia. O empregador que se arriscasse a esse tipo de acordo corria o sério risco de acabar na justiça trabalhista, que não consegue enxergar a realidade nua e crua do nosso tempo macro e micro digital.
Com a reforma trabalhista, o país deu um grande passo na direção desses novos tempos. Ficamos tão habituados ao paternalismo que a reforma é vista com desconfiança. Enxergar mais à frente exige concentração e percepção mais aguda. Em relação ao Brasil, seria exigir demais da S&P.  
Em tempo: o colunista usa óculos desde os 13 anos para corrigir uma miopia que hoje está em mais de 4 graus. Os míopes, quando envelhecem, passam a enxergar de perto, sem uso dos óculos (risos). Já os que têm apenas vista cansada, só enxergam de perto com óculos. O colunista adora uma metáfora (desculpem leitores, pois jornal não é o espaço adequado para isso).

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