Quando a CVM foi alvo de sede do poder político

Quando a CVM foi alvo de sede do poder político

POR GEORGE VIDOR
No ano passado, escrevi um livro, não distribuído comercialmente, sobre os 40 anos da Comissão Valores Mobiliários. Ex-presidentes da instituição foram as fontes principais do livro. Hoje faleceu Luiz Cantidiano, ilustre advogado, que presidiu a CVM em momento muito complicado, com a chegada do PT ao poder. Cantidiano deu um depoimento muito corajoso. Em homenagem a ele, que faleceu hoje (20/8/2017), após meses de luta contra uma enfermidade, reproduzo aqui o capítulo do livro que icnlui esse depoimento:
Luiz Cantidiano foi o primeiro funcionário que chegou a ser diretor e presidente da Comissão de Valores Mobiliários. E poderia ter sido também o primeiro a cumprir um mandato de cinco anos se questões políticas não tivessem se sobreposto à missão técnica da autarquia em um período que o mercado de capitais se preparava para entrar em um novo estágio, valorizando os acionistas minoritários.
Cantidiano é um advogado que se sentiu atraído pelo que acontecia no mundo dos negócios logo após se graduar em direito. Em 1976, recém-casado, teve a oportunidade de fazer um estágio em Londres, um dos principais centros financeiros do planeta. O estágio deveria ser de três meses mas ele acabou ficando na capital britânica por quase um ano. A embaixada brasileira em Londres tinha um setor comercial atuante, capaz de fornecer informações econômicas confiáveis a quem no Reino Unido estivesse interessado em investir aqui. Mas o Brazilian Trade Center, como era chamado, tinha carência de informações jurídicas e tributárias, e Cantidiano foi convidado para auxiliá-los nessa tarefa. A nova Lei das S.A. estava entrando em vigor, e durante esse período de onze meses ele teve a oportunidade de estudar a mudança de legislação. Cantidiano já conhecia bem a antiga lei e foi interessante compreender todo o processo a partir do ambiente londrino, com um mercado de capitais muito ativo.
Cantidiano retornou ao Brasil em fevereiro de 1977. Naquele ano, costumava esperar por sua mulher (Maria Lúcia, também advogada) após aulas noturnas na PUC/RJ. A cidade grande já vivia um ambiente de insegurança. Em uma dessas vezes, foi aconselhado pelo professor Gabriel Lacerda a procurar Jorge Hilário Gouvêa Vieira, que viria a integrar o primeiro colegiado da CVM e chegaria a presidente da autarquia. Por meio desse contato Cantidiano se interessou pelo concurso inédito que a CVM estava promovendo, com intenção de selecionar 40 candidatos que seriam contratados por 90 dias para um curso de treinamento ministrado por renomados especialistas em direito societário, regulação, função econômica do mercado de capitais e contabilidade. Da equipe de professores participavam nada menos que Alfredo Lamy e José Luiz Bulhões Pedreira, autores dos projetos de lei das S.A. e da CVM.
Cantidiano passou em primeiro lugar e estava na lista dos vinte selecionados para o quadro permanente da CVM. Porém, foi informado que teria de esperar mais um ano para ocupar uma superintendência da autarquia. Preferiu pedir demissão, pois com a experiência obtida achava que teria melhores oportunidades no mercado, advogando. E, de fato rapidamente começou a ser destacar na vida profissional. Chegou a representar os investidores institucionais no Conselho de Administração da Bolsa de Valores do Rio de Janeiro (BVRJ).
Em 1990, com a economia brasileiro sob o impacto do Plano Collor (que se propunha a matar o “tigre” da inflação com um só tiro) foi convidado pelo também advogado Ary Oswaldo de Mattos Filho para compor o colegiado da CVM. Aceitou o convite na condição de permanecer por seis meses, mas ficou por outros seis como diretor da autarquia.
Os anos 1990 foram de amadurecimento e transformação da economia brasileira. O Plano Real, de 1994, debelaria a inflação aguda e crônica, de maneira abruta. A nova moeda, que passaria a circular no dia 1º de julho, se tornava um símbolo de estabilidade monetária. No esforço para se equilibrar as finanças públicas, o governo de Fernando Henrique Cardoso aceleraria o programa de privatizações e de concessões de serviços públicos. O mercado de capitais seria cada vez mais demandado porque a economia precisava de fontes de financiamento de longo prazo, o que, por sua vez, dependia da formação de poupança doméstica ou de atração de poupança externa.
Em 1998, Cantidiano participou do grupo de trabalho (do qual também estavam Maria Helena Santana – futura presidente da CVM – e os economistas José Roberto Mendonça de Barros e José Alexandre Scheinkman) encarregado pela Bovespa de definir o que seria o “Novo Mercado”.
Cantidiano levou para o grupo observações que colhera durante o “road show” que realizara nos Estados Unidos e no Reino Unido para conversar com administradores de 50 grandes fundos de investimento sobre a questão da governança corporativa no Brasil. O termo “governança” começava a ser incorporado ao vocabulário usual do mercado de capitais brasileiro.
Uma das conclusões é que o “Novo Mercado” deveria se estruturar de maneira a não depender de mudanças que passassem pelo legislativo ou que tivesse questões a serem resolvidas pelo judiciário. A ideia de propor uma justiça especializada no mercado de capitais foi descartada. O “Novo Mercado” deveria ser constituído por empresas que aderissem voluntariamente e se dispusessem a resolver pendências mais pela arbitragem do que pela via judicial. O Conselho de Administração da Bovespa aprovou a proposta e o Novo Mercado começaria a ser implantado, tendo como princípio básico um passo adiante na governança corporativa. Integrariam o Novo Mercado (nível 1 e Nível 2) companhias abertas dispostas a dar direito a voto a todas as suas ações e ainda manter um mínimo de 25% da totalidade das ações nas mãos do público investidor. A primeira empresa a compor o Novo Mercado foi a CCR, concessionária de rodovias e sistemas de transportes públicos.
Desde o início do ano 2000 a presidência da CVM era ocupada por José Luiz Osório de Almeida Filho, que havia sido diretor do BNDES e da BNDESPar. E no Banco Central estava na presidência Armínio Fraga.
Ambos tinham o mesmo entendimento sobre o papel que a CVM deveria desempenhar nessa nova etapa do mercado de capitais. Tinham proximidade pessoal, por serem concunhados. O “histórico” embate entre as duas instituições desapareceria. Assim, o governo proporia uma mudança na legislação, pela qual a CVM assumiria a responsabilidade não apenas pela regulação dos negócios com ações e debêntures, mas efetivamente sobre todos os valores mobiliários. Os fundos de investimento de quaisquer modalidades, por exemplo, deixariam a esfera do Banco Central e passariam para a CVM.
Como conselheiro e professor do Instituto Ibmec, Cantidiano foi convidado para participar de um seminário com o propósito de discutir o mercado de capitais. Estavam na reunião Armínio Fraga, José Luiz Osório e Francisco Gros (então presidente do BNDES). A análise de Cantidiano era que o mercado precisava evoluir da visão de que “os empresários não queriam sócios, e sim os recursos deles provenientes, e os investidores, por sua vez, também não queriam ser sócios, mas sim usufruir dos benefícios fiscais a eles oferecidos”.
A visão que havia prevalecido na legislação de 1976 era a da manutenção do controle acionário. A oferta ao mercado era de ações que não davam direito a voto, mas sim dividendos razoáveis. A conclusão é que para fortalecer o mercado de capitais seria preciso mais comprometimento do empresário com os acionistas minoritários.
O diagnóstico apresentado talvez tenha sido uma das razões para Cantidiano ser o nome que deveria substituir Osório à frente da CVM. Aprovada no ano anterior, a lei que definia a nova configuração da CVM entrara em vigor em março de 2002. Assim, Cantidiano, ao ser empossado, se tornaria o primeiro presidente da autarquia com mandado definido de cinco anos, não coincidente com o período de cada governo (quatro anos).
O ano de 2002 foi especialmente complicado para a economia. Inflação e dólar em alta, pois já havia a expectativa de que o PT poderia sair vitorioso nas eleições presidenciais de outubro e novembro, e não se sabia concretamente quais os rumos que a economia iria tomar.
Nesse ambiente em que a própria CVM estava com mais responsabilidades, assumindo a regulação dos mercados de derivativos e dos fundos (que, por sinal, tinham sofrido grandes perdas após a necessária marcação a mercado do valor de suas quotas), Cantidiano precisava estruturar o novo colegiado. Até então os diretores eram demissíveis sem justa causa. Passavam a ter mandato definido.
Quando foi convidado por Pedro Malan para a presidência da CVM, o então Ministro da Fazenda deu a Cantidiano liberdade para indicação dos nomes da diretoria. Em setembro de 2002 ele fez o convite a Vladimir Castelo Branco, Norma Parente e Luiz Antônio Campos, todos já diretores (o último estava de saída). A quarta diretoria estava vaga e a intenção de Cantidiano era convidar alguém de mercado para ocupá-la.
Não houve tempo hábil para que as indicações fossem formalizadas e submetidas ao Senado antes das eleições. Com a vitória de Lula, organizou-se uma equipe de transição e Cantidiano foi avisado que seu interlocutor seria o futuro ministro da Fazenda Antônio Palocci. Cantidiano já o conhecia da época em que Palocci fora prefeito de Ribeirão Preto e decidiu vender no mercado 49% das ações da companhia telefônica local. “Fui o advogado da operação”, recorda.
Em um encontro com o vice-presidente eleito José Alencar, em Belo Horizonte, Cantidiano se queixou que Palocci não o recebia. José Alencar decidiu intermediar a conversa entre os dois. Dias depois, Cantidiano recebeu uma ligação de Luiz Gushiken, que viria a ser um dos mais próximos auxiliares do presidente Lula. Gushiken indicou dois nomes para a diretoria da autarquia. Cantidiano argumentou que a CVM era um órgão técnico, para o qual não cabiam indicações políticas.
Em dezembro de 2002, numa reunião com os presidentes das “CVMs” da Europa, Cantidiano recebeu a informação que Gushiken manteria as duas indicações políticas. Sua primeira reação foi a de deixar a autarquia, mas o ministro Malan sugeriu uma alternativa: submeteria ao Senado dois nomes (os de Vladimir e Norma) e manteria os outros dois vagos.
Começou o governo Lula, e Cantidiano sentiu falta de uma interlocução. No Banco Central, Armínio Fraga havia sido substituído por Henrique Meirelles, com um estilo mais fechado. Porém, no período que ambos estiveram no governo não houve episódios de conflito entre o Banco Central e a CVM. Com o ministro da Fazenda Antônio Palocci, Cantidiano tinha contato nas reuniões do Conselho Monetário Nacional. Palocci sempre gentil, mas não havia a interlocução necessária com o ministro.
Havia muito o que fazer na CVM. “Tínhamos um ambiente de trabalho muito agradável na CVM. Quem passava por lá se apaixonava e assim resolvemos continuar trabalhando. Com o governo sendo duro na política monetária, o caminho para investimentos era o mercado. Então resolvemos reforçar a regulação”.
Enquanto levavam adiante a execução das suas tarefas, surgiam comentários e até cartas apócrifas condenando a presença de Cantidiano à frente da CVM, sempre insinuando que levara para o órgão a defesa de interesses privados. Desde que assumira, ele tomava certo tipo de precaução, como a de não receber ninguém na CVM sem a companhia de um outro diretor ou de um superintendente. Mas a campanha difamatória continuou.
Em de julho de 2003 Cantidiano resolveu sair, embora sua gestão tivesse grande apoio dentro da CVM. Nesse momento Palocci o chamou para conversar e prometeu propor ao Senado a diretoria que ele, Cantidiano, indicasse. Essa conversa foi testemunhada por Joaquim Levy, futuro Ministro da Fazenda no primeiro ano do segundo mandato da presidente Dilma Rousseff, e que na ocasião estava na Secretaria do Tesouro Nacional.
A decisão de sair já estava tomada, mas Cantidiano prometeu permanecer trabalhando até que fosse indicado o seu substituto. E assim continuou por quase um ano na CVM. Para que a autarquia conseguisse firmar sua independência algumas questões tinham de ser resolvidas, como, por exemplo, a política de recursos humanos. “O Planejamento maltratava os funcionários da CVM, não os equiparando-os aos do Banco Central ou da Susep. Mas conseguimos a equiparação. As restrições orçamentárias eram aflitivas. Convidado pela Securities Exchange Comission (SEC) para uma reunião com vários presidentes de CVMs nos Estados Unidos, tive de viajar tirando uma passagem com minhas milhas pessoais. Mesmo assim fomos contornando essas restrições com o apoio de convênios; o Banco Mundial nos ajudou a contratar especialistas da SEC para dar um curso no Brasil”, relembra.
Essa CVM com colegiado incompleto deixou um considerável legado. Nesse período ocorreu a fusão da BM&F (Bolsa Mercantil & Futuros) com a Bovespa. A instrução 409, que estabeleceu regras para os fundos de investimento, levou seis meses sendo discutida e o texto que veio da audiência pública resultou em 300 artigos.  Além dos fundos de renda fixa, foram também regulados os fundos cambiais e os imobiliários. Definiu-se os “market makers”, os “fazedores de mercado”. E, principalmente, a regulamentação das ofertas iniciais de ações (os IPOs), que se sucederiam a partir daí. O último ato de Cantidiano à frente da CVM foi o IPO da empresa Natura, o primeiro no Novo Mercado da BM&FBovespa.
Marcelo Trindade, outro advogado, concluiria o mandato de cinco anos de Cantidiano.
A passagem pela CVM mudou o modo como Cantidiano ainda hoje encara muitas questões na sua vida profissional. Viu como é importante não julgar açodadamente, “na fumaça do tiro”. “Há que se dar tempo para se colher as provas. E o julgador tem sempre que mirar onde está o interesse público, mantendo independência. Lá na CVM aprendi que o rodízio de auditores independentes não era uma jabuticaba – como se dizia, pois apenas outros cinco países adotavam essa regra. Aprendi também que não adiantava regular, fiscalizar e não punir. O regulador deve ficar atrás da porta sempre com a garrucha na mão. É como a Lei Seca. Só pegou porque pune o infrator”.

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