Um espelho

Um espelho

POR GEORGE VIDOR
Habituados a dificuldades, os russos buscam opções para sua economia, e a energia nuclear deve ser uma delas
A Rússia é um país enigmático, como dizem os próprios russos. Então para tentar entendê-la é preciso buscar alguns exemplos na história. Sobre a transformação ocorrida depois do fim do comunismo, talvez nada seja tão marcante quanto a Catedral do Cristo Salvador, situada bem no centro de Moscou, junto ao rio que corta a cidade e ao Museu Puchkin (muito conhecido pelo seu acervo de pinturas impressionistas francesas e por antiguidades egípcias).
A catedral foi erigida no Século XIX, durante 60 anos, em celebração à derrota sofrida por Napoleão em 1812. Quando o imperador francês entrou com seus soldados em Moscou (em vez de atacar a então capital, São Petersburgo, escolheu a cidade para atingir "o coração" da Rússia) encontrou-a quase completamente abandonada e em grande parte incendiada pelos próprios moscovitas. Após 35 dias, decidiu se retirar, o que foi trágico. Assediados por guerrilheiros e por soldados do exército regular do marechal Kutuzov, as tropas napoleônicas – formadas por pessoas de diferentes nacionalidades, pois vinte idiomas diferentes eram falados em suas fileiras -  acabaram enfrentando o rigoroso inverno e a fome pelo caminho. De centenas de milhares de homens, poucos retornaram à França.
Foi a primeira grande derrota de Napoleão.  A de 1812 inspirou músicos (Tchaikovsky e sua famosa "Abertura"); pintores, que retrataram a batalha de Borodino, a frustração de Napoleão em Moscou, a retirada; e os czares na construção de igrejas e catedrais. A igreja ortodoxa em geral não cultua estátuas, pois os santos não podem ser vistos de lado ou por trás, apenas de frente.  Então os czares, desde Ivan, o Terrível, costumavam construir catedrais em agradecimento aos céus.
A Catedral do Cristo Salvador começou a ser construída em 1839 e só ficou pronta 60 anos depois. Durante esse tempo, cinco czares acompanharam a edificação, construída no lugar de um antigo convento de freiras (por sinal, a abadessa teria amaldiçoado a obra). Era a construção mais alta de Moscou com mais de 100 metros de altura. Podia ser vista a quilômetros de distância. Em 1931, já em seu pleno delírio megalomaníaco, Josef Stálin – diante dele, Ivan, o Terrível, não passava de um aprendiz - decidiu demoli-la para erigir no mesmo lugar o Palácio dos Sovietes, as organizações populares que deram origem ao sistema de governo imposto pelos bolcheviques a partir de 7 de novembro de 1917. Com uma estátua do falecido líder Lênin no alto do Palácio, que teria mais de 100 metros, Stálin estava decidido a apagar a lembrança do passado e, para isso, resolvera abrir largas avenidas em Moscou, além do metrô, cuja primeira linha foi inaugurada em 1935. Mas o Palácio dos Sovietes se revelou uma obra financeiramente inviável e o projeto foi abandonado. Nada se fez ali até que o primeiro-ministro Nikita Kruschev, que sucedeu a Stálin, morto em 1953, em decorrência de um derrame (estava trancado no quarto e ninguém ousou entrar para ver o que tinha acontecido), decidiu construir uma imensa piscina pública.
Em uma cidade que só tem, em média, 83 dias de sol por ano (melhor que São Petersburgo, com apenas 60 dias de sol), e tem um longo inverno gelado, a piscina tinha de ser com água aquecida, obviamente, provocando vapores que poderiam ameaçar as obras do vizinho Museu Puchkin. No dramático processo de adaptação da Rússia ao fim de 70 anos de comunismo, o prefeito de Moscou, apoiado pelo então presidente Boris Yeltsin, liderou um movimento para reconstrução da Catedral do Cristo Salvador. Foram gastos cerca de 150 milhões de dólares, com doações dos crentes e de empresários que ficaram biliardários por um ainda estranho e rápido enriquecimento (Moscou tem a maior concentração de bilionários do planeta). Cinco anos de obras foram suficientes para erguer a catedral em suas formas originais, baseadas em fotos tiradas antes da demolição pela KGB. A partir desses arquivos a antiga arquitetura pôde ser recomposta, com os principais artistas russos da atualidade pintando os ícones nas paredes, sem deixar um centímetro sequer nu internamente. Aproveitando as fundações da piscina pública, há embaixo da catedral uma igreja consagrada a São Nicolau, a quem as abadessas do século XIX tinham devoção – com isso a demolição do convento deve estar perdoada...
Moscou tem 15 milhões de habitantes e uma frota de três milhões de veículos. Suas 16 linhas de pessoas transportam diariamente 14 milhões de passageiros, O desemprego na capital russa é de 4%, a metade do resto do país, embora as estatísticas oficiais sejam muito contestadas. Os empregos públicos dos tempos do comunismo encolheram e os salários idem. Os russos têm nostalgia do comunismo? Pelo que se vê nas ruas, não passa pela cabeça das novas gerações uma recaída. O consumo se espalhou rapidamente, em apenas 20 anos, por toda a sociedade russa. As máfias que ameaçavam a tranquilidade dos cidadãos pactuaram uma trégua há tempos. É preciso ter cuidado com a carteira em locais de grande movimento, mas ninguém é assaltado a mão armada em Moscou. Ao menos não vira notícia diária nos jornais.
Mas tal qual o Brasil a economia russa se tornou muito dependente do petróleo. Terá de buscar outras opções para voltar a crescer. Por incrível que pareça, uma delas é a energia nuclear: a Rússia agora lidera a tecnologia nesse campo, ainda que carregue o peso do acidente de Chernobyl, na Ucrânia. Mas isso foi no tempo do comunismo.

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